terça-feira, 1 de junho de 2010

A Música, Os Ritmos e Os Instrumentos


Primeira parte

Fui criado numa Igreja Batista Regular na periferia da grande Belém, no município de Ananindeua, Estado do Pará. Não era filho de pastor nem fiz parte de uma família envolvida com a Igreja, mas de um lar de pessoas que tinham conhecimento bíblico e sofreu com um divórcio e o afastamento dos padrões bíblicos para família. Aos sete anos fiz minha decisão para servir a Cristo, aos 10 fui batizado, aos 14 entendi que Deus me estava chamando para o ministério e aos 19 ingressei como aluno do Seminário Batista do Cariri, escola da qual hoje sou professor. Assisti na família, na Igreja e no movimento Batista Regular a mudanças profundas que têm muito a ver com a palestra a que fui desafiado participar neste sábado, confiante em Deus que poderei tratar o assunto com o mínimo de propriedade, atendendo a algumas expectativas que a mim foram confiadas.


Na infância, ao andar sozinho de casa para a Igreja, uma caminhada de quase um quilômetro, sentia-me feliz, ao galgar os poucos metros que acessavam a entrada do templo até o segundo banco onde costumava sentar, ouvindo os acordes e a melodia do hino preferido da organista e minha primeira professora de música, a missionária Noemi Miranda dos Santos. Ela tocava "Tempo de ser Santo, tu deves tomar" e aquela música era como o som do céu, como se não houvesse mais um mundo cheio de pecado, como se houvesse esperança para um menino cheio de angústias e tantas questões insolúveis dentro d'alma. Ainda posso, ao fechar os olhos, ouvir o som daquela música, diferente de toda minha experiência pessoal, além de mim e inteiramente nova, um novo cântico, uma nova canção.


Naquele tempo, fim da década de 1980, nossa Igreja utilizava eminentemente o Cantor Cristão para adoração com música, apenas um órgão eletrônico acompanhava os hinos e alguns irmãos tocavam violão que acompanhava especiais individuais ou as programações da mocidade. Utilizávamos a música de algumas outras fontes. Tínhamos o Cânticos Alegres e o Melodias de Maranata, publicações da Editora Batista Regular; conhecíamos hinos da Harpa Cristã, hinos do Melodias de Vitória e canções de que não sabíamos a procedência.


Tive uma experiência musical naquela Igreja e entre as Igrejas Batistas Regulares do Estado do Pará muito intensa. Lembro que aprendi aos onze anos a tocar órgão e aos treze já acompanhava os hinos; aos quatorze cantava tenor no coral as relativamente complicadas cantatas de John W. Peterson e com a mesma idade tive aulas particulares de violão; aos dezesseis comecei a reger corais e, antes disso, já dirigia os hinos e cânticos congregacionais. Antes de sair daquela Igreja para vir ao Seminário, comecei a compor e algumas músicas minhas aquela Igreja e movimento conhecem. Toda base do meu aprendizado musical se deu naquela Igreja e não estaria falando sobre o assunto se não fosse aquele aprendizado.


Lembro como cheguei a fazer parte de um quarteto vocal na Igreja. Era composto do pastor e a esposa dele, da missionária e eu. Podíamos ensaiar, à primeira vista, um hino depois da EBD e o mesmo ficar pronto para o culto à noite. Isto não demonstra o talento dos seus componentes, mas a cultura musical que uma Igreja tradicional podia ter antes das mudanças. Cantar a quatro vozes não é fácil. Exige leitura, percepção e experiência musical. A esposa do pastor e ele costumavam disputar quem conhecia mais hinos. Só valiam para disputa os hinos cantados sem erros e que tivessem a letra memorizada. Quantos casais das nossas Igrejas podem fazer isso hoje? Quantos quartetos a quatro vozes há em nosso movimento? Quantos corais locais podem ensaiar cantatas de John Peterson e quantos regentes existem em nossas Igrejas que tenham condições de digerir esse repertório, sendo aptos para transmiti-lo a grupos vocais formados em nossas Igrejas?


Na Igreja em que trabalho hoje como ministro de música, a Igreja Batista Regular do Novo Juazeiro, privilegiada por uma boa estrutura eclesiástica, que inclui um programa de educação musical, e privilegiada pela presença de bons músicos, o acompanhamento instrumental é feito por um piano, dois violões, um baixo elétrico, duas flautas doces e uma flauta transversa nos domingos à noite. A congregação não é mais dirigida por um só regente, mas por um grupo de louvor. Insistimos em cantar músicas do Cantor Cristão, mas achamos importante utilizar músicas publicadas em hinários mais recentes, como o Hinário para o Culto Cristão e o Voz de Melodia. Utilizamos também músicas provenientes de grupos musicais e cantores evangélicos que surgiram no fim do século passado, acreditando que estas músicas não ferem os princípios bíblicos da adoração que honra a Deus nem pelo conteúdo que estas músicas possuem nem pela forma com que estas músicas são tocadas, considerando o estilo destas músicas, a nossa interpretação delas e as pessoas que produziram originalmente estas músicas.


Apesar disso, reconheço que muitas músicas que utilizamos em nossa Igreja Batista Regular hoje seriam proibidas na minha Igreja Batista Regular de ontem. Reconheço que o baixo elétrico comprado recentemente por nossa Igreja, a sugestão do ministro de música, não seria aceito nas nossas reuniões de adoração. Ainda assim considerado não estar errada a decisão da Igreja de usar esta formação musical e este repertório. A pergunta que se insurge é óbvia: Por quê? Estávamos errados antes e agora estamos certos? Estávamos certos antes e agora estamos errados tendo sofrido um processo de mundanização O que mudou nestes 20 anos de História que faz com que uma Igreja tradicional escolha mudar um pouco a roupagem da sua música, entendo que certo padrão musical, considerado errado num dado momento, passe a ser considerado correto num outro momento?


Gostaria de defender que, nestes 20 anos, houve drásticas mudanças no cenário mundial, nacional e evangélico. Um entendimento da música e dos instrumentos, tanto na cultura geral como nas Escrituras nos esclarecerá que as escolhas que nos levaram a uma abertura nas Igrejas tradicionais para um novo repertório e para a utilização de novos instrumentos musicais não foram erradas. Além disso, um posicionamento mais equilibrado da música na Igreja, ainda que seja um posicionamento mais difícil, isto é, um posicionamento que leva em consideração as mudanças culturas, fazendo certas concessões artísticas, sem abrir as portas da Igreja para a entrada do pecado dentro do culto cristão, é o posicionamento que melhor se alinha com os dados bíblicos e a utilização adequada da música, dos ritmos e dos instrumentos musicais na Igreja de Deus


As mudanças

No início da década de 1990, o movimento Batista Regular no estado do Pará sofreu varredura da auto denominada Renovação Carismática. A terceira onda atingiu todas as denominações tradicionais pentecostais e não pentecostais gerando dois tipos novos de evangélicos: os neo-evangélicos e os neo-pentecostais.


Os primeiros são os evangélicos que não tem uma postura rigorosa com respeito da fé e da prática cristã, envolvendo-se nos programas de crescimento da Igreja. Os neo-evangélicos podem se envolver com evangelho social, ecumenismo e tentam contextualizar a sua mensagem, buscando uma atualização do discurso e da conduta.


Os neo-pentecostais são mais espiritualistas. Estão envolvidos com os pressupostos da doutrina pentecostal, mas dispensam o legalismo comportamental próprio das denominações pentecostais tradicionais como Assembléia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e Igreja do Evangelho Quadrangular. Os neo-pentecostais têm a tendência de retornar a simbologia do Antigo Testamento na liturgia e utilizam óleo, água, datas festivas, etc. Estes dois grupos dissidentes das Igrejas evangélicas tradicionais fizeram uma grande transformação na música e na forma de culto de grande parte das Igrejas Cristãs Brasileiras e o produto musical destes grupos não limitados a fronteiras institucionais é a maior preocupação deste opúsculo.


Duas outras fortes mudanças aconteceram nos fins dos 1980 e os inícios dos 1990. A primeira global e a segunda nacional. Em 1991, de acordo com a análise do historiador Erick Hobsbawm, encerrou-se o breve século XX, cujo início se deu em 1914. De acordo com este historiador, que traça os ciclos históricos através da categorização interpretativa, o século XX começou com a Primeira Guerra mundial em 1914 e terminou com o fim da União Soviética em 1991.


O século XX foi marcado por guerras nunca vistas e pela partição do mundo em dois grandes blocos econômicos, políticos e ideológicos: o bloco comunista e o bloco capitalista. Tudo poderia ser explicado pela atração ou repulsa destes dois grandes pólos que viveram sempre em intenso conflito, ainda que não fosse armado. Quem resolve melhor seus problemas sociais? Quem alcança maior avanço tecnológico? Quem espalha por mais países do mundo a sua influência? Quem chega primeiro a Lua? Estas eram as perguntas recorrentes do século XX feitas às nações e aos principais líderes do século: os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Soviéticas. Deste modo, havia duas maneiras de se explicar a vida, relativamente simples e bem resolvidas para os seus proponentes. Ou cristão ou ateu, ou individualista ou corporativista, ou democrático ou totalitário, ou capitalista ou socialista, ou vários ou um partido, ou azul ou vermelho, ou direita ou esquerda, bem como outras opções dualistas eram dadas ao cidadão do século XX.


Quando o bloco comunista ruiu e o ideal estadunidense se mostrou impossível de ser alcançado pelos países que a ele se alinharam, as grandes ideologias caíram em descrédito. Com esta queda, tudo que a estas ideologias estava equivocadamente relacionado também caiu em descrédito. Surge então a chamada pós-modernidade, caracterizada pela globalização, pela descrença nas grandes narrativas e instituições tradicionais, pela elevação do sujeito-indivíduo como fonte da verdade, pela filosofia pós-estruturalista que explica a realidade pelas relações da linguagem, pela elevação das ciências e mecanismos de informação e valorização da imagem em detrimento da essência, da oralidade e da escrita.


A pós-modernidade tem relação direta com a música evangélica dos nossos dias, 20 anos após o nascimento da pós-modernidade, como destaca MENDONÇA:


Os sinais da pós-modernidade, percebidos nas mais distintas áreas da sociedade, também se revelam no campo religioso, mais precisamente na moderna canção religiosa, a canção gospel, a qual, se ainda permanece como grande divulgadora da mensagem religiosa tradicional, também expressa uma integração cada vez maior não somente aos estilos musicais populares mais atuais como também aos modelos de performance vocal e visual e às estratégias de marketing consolidadas pela indústria da música popular.


Mídia impressa, internet, programas de rádio e TV, enfim, os veículos de comunicação de uma forma geral, têm sido utilizados pelos evangélicos para a divulgação da música gospel. Um olhar mais atento pode perceber que a integração dos músicos cristãos na modernidade, em especial, dos músicos neopentecostais, tem sido marcada pela adoção de gêneros musicais de sucesso popular, como o funk, o reggae, o forró, o pagode. Esses estilos são introduzidos pela renovação musical cristã, que se sustenta tanto na sacralização de gêneros musicais nacionais quanto nas tendências musicais populares de massa, estrangeiras ou não, em um processo que acompanha a globalização, a diversidade e o pluralismo da sociedade pós-moderna.


A mudança nacional aconteceu na consolidação do processo democrático, que pôs fim a um período de 26 anos de ditadura militar, cuja principal justificativa era conter a ameaça comunista no Brasil. Em 1989, foi eleito o primeiro presidente da República do Brasil por voto direto desde 1964, depois de ter sido promulgada a Constituição de 1988, que dava plenos direitos de liberdade política e religiosa aos cidadãos brasileiros, não importando as matizes de raça, cor, sexo e classe social. A década de 1990 conheceu um crescimento sem precedentes dos que se denominam evangélicos. Entre 1996 a 2007, só os evangélicos pentecostais passaram de 11% para 17% da população brasileira. Além desses novos tons no quadro nacional, houve na década de 1990 a ascensão da economia neoliberal no Brasil, que se evidenciou de modo mais contundente na privatização de empresas estatais e na maior abertura para comercialização de produtos importados no Brasil.

Autor: Pr. Carlos Renato / Igreja Batista Regular de Novo Juazeiro
Material apresentado na Primeira Clínica para pastores em Fortaleza – CE, dia 15 de maio de 2010

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